Blog parado, talvez adormecido
por um longo tempo, porque de tempos em tempos precisamos mesmo que os
pensamentos tirem um descanso, às vezes uma soneca, às vezes uma hibernação.
No último ano estive viajando no
tempo, não em um delorean como em De volta para o futuro, não em uma cabine
telefônica, como em Doctor Who. Acho que a minha viagem no tempo tem sido muito
mais analógica do que digital, mas ela vem acontecendo.
No filme ultrarromântico Um amor
para recordar, o mocinho tenta realizar uma série de desejos da mocinha que
sabia que em breve morreria e, um desses desejos era estar em dois lugares ao
mesmo tempo. Para realizar esse desejo ele a leva no limite entre estados,
coloca um pé de cada lado e a comunica sobre isso. A mocinha, saber que seu
desejo foi realizado, dá um sorriso enorme, assim como aplicar uma tatuagem
daquelas falsas de chiclete, mas, ao contrário dela, eu devo viver muito ainda,
tenho duas tatuagens de verdade (e quero que sejam mais) e posso viajar no
tempo, além de estar em dois lugares ao mesmo tempo como ela.
No meu caso não havia mocinho,
não havia romantismo, só havia eu sozinha, vigiada por um guarda que estava do
outro lado da rua em uma cabine, sentada em frente ao parque infantil que
frequentei por toda a minha infância em pleno domingo de páscoa. Naquele dia,
eu saí da minha casa no centro de São Paulo, peguei o trem e fui de volta para
a minha terra, Franco da Rocha, para ter contato com o meu objeto de pesquisa
do mestrado, o Hospital Psiquiátrico do Juquery, cujas memórias estavam
guardadas em caixas bem escondidas lá no fundo do depósito da minha mente.
Caminhar por lá novamente após tantos anos, e, mais ainda, após tantos anos
vivendo fora de Franco da Rocha, abriu muitas e muitas caixas e gavetas de
memórias empoeiradas. Dei a volta por todo o antigo hospital, mas, ao descer as
escadas para ver o parque infantil, naquele momento parcialmente destruído pelo
abandono e hoje demolido para a construção de uma nova escola, me fez ter
contato com aquela menininha que por muitos anos esteve ali. Me fez pensar no
que ela era, no que sou hoje e no que desejo para o futuro, para mim e para o
Juquery. Creio que no momento em que estava voltando da visita dentro dos
limites do parque e me sentei nas escadas para observar o que sobrou de uma
parte da minha infância, eram as três versões de mim que observavam tudo e
conversavam entre si: a menininha que fui, a pesquisadora que sou e a minha
versão futura. E eu não sei quem aconselhava, quem abraçava e quem acalmava
quem, mas estávamos todas ali naquele exato momento.
Durante o último ano eu conversei
muito com meus colegas de mestrado e pude notar que todos os projetos de alguma
forma têm uma relação pessoal profunda com seus pesquisadores. O mestrado é
muito mais do que um curso, uma pesquisa, é uma realização de sonhos, de
vontades, de desejos que, por muitas vezes, ficaram adormecidos, recebendo pequenos carinhos e
visitas ocasionais por anos, até poderem ser tornar realidade, não porque os
pesquisadores, ou sonhadores não quisessem colocá-los para fora, mas em muitos momentos não havia
tempo ou oportunidade, não havia proximidade, não havia a possibilidade de realização ou até, nem
sabiam com o que sonhar, mas sonhavam, e pesquisavam aqui e ali, até que um
plano mais elaborado viesse à tona e a soma de acontecimentos e conjunções
astrais permitissem que seus projetos fossem submetidos, avaliados e aprovados
para serem finalmente estudados.
A ficção dos filmes e dos livros
nos permite sonhar com grandes viagens e aventuras, nos permite fazer magia,
nos permite imaginar mundos e lugares distantes, mas ser pesquisador nos
permite viajar no tempo, nos permite enxergar o nosso sonho, conhecido também
como objeto de pesquisa, de maneiras diferentes, talvez mais regrada, dentro
dos padrões científicos, mas esses mesmos padrões, esse mesmo rigor nos permite
expandir o que antes era sonho, nos permite encontrar mais um lugar de fala,
que, no meu caso , antes era apenas o lugar da menininha que lutava para que o
lugar onde ela brincou e cresceu fosse preservado, também o local da cidadã que
entendia que havia a necessidade de dar luz a um lugar que para ela e outras
pessoas é querido e cheio de memórias, mas para outros um lugar cheio de
tristeza e sofrimento. Hoje a pesquisadora ainda está acertando o foco, mas,
graças às pesquisas, ao rigor da ciência, a pesquisadora pelo menos sabe para
onde deve apontar sua lente.
Em uma cultura como a nossa que
enxerga os estudos como uma coisa chata, tediosa, cansativa, tem sido cada dia
mais emocionante visitar a minha máquina do tempo particular. Conversar com a
menininha, com a moça cidadã francorrochense sendo a pesquisadora a dona da
palavra por cada vez mais e mais vezes é muito esclarecedor. Enxergar os
projetos para o futuro através das notícias, dos eventos e dos amigos que
frequentam ainda hoje o nosso velho Juquery é estimulante para novas ideias,
novos entendimentos, trazendo sorrisos enigmáticos no rosto de minha versão
futura.
Eu não creio que, pelo menos para
o meu tipo de pesquisa, haja a possibilidade de eu desligar minha máquina do
tempo, de desapegar das minhas outras versões do passado, mas é importante que
eu converse cada vez mais com a minha versão presente, é importante lembrar a
mim mesma que o meu atual lugar de fala é o de pesquisadora, para, quem sabe,
se conectar com a minha versão futura em mais oportunidades. É muito importante
lembrar aqui que as memórias não são como os fantasmas dos natais passados me
assombrando, citando Charles Dickens, mas sim memórias, sopros, dicas de mim mesma,
do meu subconsciente para escrever uma pesquisa científica, uma máquina do
tempo. E não é assim o restante da nossa vida? De tempos e tempos uma conversa,
um diálogo, um sussurro entre versões nossas do presente, passado e futuro?